Quando eu era estudante de Medicina, tive a oportunidade de participar ativamente de um Dia Nacional de Vacinação contra a poliomielite. Assim como meus colegas de turma, fui designado na região de Mogi das Cruzes para ser vacinador em um posto de saúde. Ganhamos uma marmita de almoço e estávamos orgulhosos. Assim como os pais que levavam seus filhos para serem vacinados. Era o início da década de 80.
O que mudou em 40 anos, que a população não tem a mesma cultura daquela época?
Durante a pandemia, a palavra “vacina” era mencionada dezenas de vezes por dia por cada um de nós e a maioria a via como a esperança para sobreviver em meio a tanta tragédia. Entretanto, vivemos momentos curiosos em que líderes de opinião social mencionavam inesperados absurdos, como o “chip da China”, “jacaré”, “vacina extraída de abortos”, entre outros. Mas felizmente, venceu o bom senso e o Brasil teve um nível de adesão relativamente bom em relação a outros países.
Ficou em evidência a estrutura organizacional do sistema de acesso vacinal universal no Brasil, gerenciado pelo Programa Nacional de Imunização (PNI).
Instituído pela Lei nº 6.259/1975 e regulamentado pelo Decreto nº 78.231/1976, o PNI iniciou sua primeira Campanha Nacional de Vacinação contra a poliomielite em 1980, com a meta de vacinar todas as crianças menores de cinco anos em um só dia. O último caso de poliomielite no Brasil ocorreu 1989; além disso, em 1994, o Brasil recebeu, junto com os demais países da região das Américas, o certificado que a doença e o vírus haviam sido eliminados do continente.
A eficácia do PNI pode ser percebida por meio dos resultados obtidos ao longo dos anos. São exemplos de sucesso: a erradicação do sarampo, a eliminação do tétano neonatal e o controle de outras doenças imunopreveníveis, como difteria, coqueluche e tétano acidental, hepatite B, meningites, febre amarela, tuberculose, rubéola e caxumba, bem como a manutenção da erradicação da poliomielite.
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A Portaria nº 597 de 2004, do Ministério da Saúde, estabelece, em seu art. 3º, que as vacinas previstas no calendário do PNI são de carácter obrigatório. Ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também prevê que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias” (art. 14, §1º, do ECA). Atualmente, são oferecidas 18 vacinas infantis nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Na década de 80, eram apenas cinco vacinas.
Entre as maiores quedas de cobertura vacinal infantil está a da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), que, em 2015, chegou a 96% das crianças, mas em 2021 teve redução para 71%. No mesmo período, a de poliomielite (contra a paralisia infantil) foi de 98% a 67%.
No Brasil, as ações do PNI venceram o principal desafio das grandes distâncias, demonstrando na prática que a total capilarização de uma ação de saúde pode ser alcançada atingindo a meta da universalidade do SUS.
O sarampo foi erradicado em 2016 no Brasil e recebeu o certificado de erradicação pela OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde). Entretanto, o Brasil vai perder a certificação por terem sido identificados novos casos a partir de 2018. Desde então, foram registrados mais de 20 óbitos devido ao sarampo no país.
A grande preocupação é a crescente falta de adesão ao calendário obrigatório do PNI. De acordo com o levantamento DATASUS, a cobertura para as vacinas obrigatórias tem apresentado uma queda drástica. (Tabela)
Quais são os motivos que podemos reputar?
1- Constante redução de investimento oficial na atenção primária
Acreditava-se que ao oferecer as vacinas de forma permanente nas UBS haveria um aumento da adesão. Temos observado uma constante redução de verbas na atenção básica. Quando isso acontece, os municípios mais distantes e mais pobres sofrem com a qualidade do atendimento. Se não houver uma iniciativa local, com verba municipal, a população é diretamente afetada.
A falta de propaganda educativa maciça em campanhas de “dias de vacinação” enfraqueceu a cultura da prevenção. As pessoas menos esclarecidas pensam que quando é anunciada uma erradicação de determinada doença, não há mais a necessidade de a criança ser vacinada. Isso é um grande equívoco, pois a manutenção da erradicação depende da continuidade da vacinação. Além disso, o aumento do acesso à informação proveniente das mídias sociais não resultou em benefício, ao contrário, favoreceu mais as “fake news” e teorias da conspiração.
2- Ativismo da população, imprensa e profissionais de saúde
A politização da saúde ocorrida durante a pandemia de Covid-19 demonstrou o quão é maléfica para a população. A opinião de políticos mal esclarecidos ou que têm interesses em “esconder” um problema por temer prejuízo à própria imagem do governo leva os mesmos a se omitirem ou mentirem para seus apoiadores. Políticos opositores também se aproveitam do momento para criticarem seus inimigos políticos. A maior prejudicada dessa polarização é a própria população, que inconscientemente toma um partido. E o pior é que a imprensa e os próprios profissionais de saúde se colocam como ativistas. A imprensa deixou de ser um órgão informativo e passou a alimentar seus grupos de expectadores ou ouvintes com “notícias” que eles querem ouvir. Profissionais de saúde usam a mídia social para aumentar o número de simpatizantes, usando argumentos cientificamente questionáveis, mas que são agradáveis àqueles que gostam daquela informação.
Nesse sentido, silenciosamente, começaram a surgir os ditos “movimentos antivax”, geralmente baseados em teorias sem evidência científica. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as vacinas evitam de dois a três milhões de mortes por ano. A organização divulgou uma lista das 10 grandes ameaças à saúde em 2019 e, entre elas, estava o “medo de vacina”. Em 1998, o médico britânico Andrew Wakefield publicou um estudo em uma respeitada revista científica, a Lancet. Nele, Wakefield relacionava a vacina tríplice viral, que previne contra a caxumba, o sarampo e a rubéola, ao aparecimento de autismo. Das 12 crianças com autismo analisadas no artigo, oito teriam manifestado a doença duas semanas depois da aplicação da vacina. A teoria era de que o sistema imunológico havia sofrido uma sobrecarga com a imunização.
Um tempo após a publicação, o estudo começou a ser questionado. O médico estava envolvido com advogados que queriam lucrar a partir de processos contra fabricantes de vacinas. Além disso, ele utilizou dados falsos e alterou informações sobre os pacientes. Após a confirmação do caso, a Lancet se retratou e retirou o estudo de seus arquivos. Para os grupos antivax, o correto seria iniciar a vacinação quando a pessoa estivesse com o sistema imunológico mais “maduro”. Além disso, acreditam que as vacinas deveriam ser dadas uma de cada vez (sem a aplicação de uma dose única para mais de uma doença), e que o tempo entre uma dose e outra deveria ser maior.
A justificativa das pessoas que defendem esse movimento é que aplicar doses combinadas ou simultâneas causaria uma suposta sobrecarga imunológica. Vale ressaltar que a OMS já declarou que a administração de várias vacinas ao mesmo tempo não causa problemas à imunidade. Ela também defende essa medida para evitar um desconforto na criança, de ter que se submeter a diversas doses, e para ela não precisar ir a centros de saúde inúmeras vezes, economizando tempo, dinheiro e não deixando que ela fique ainda mais exposta a outras doenças que poderiam ser transmitidas nesses locais.
O maior efeito predador acusado por uma teoria da conspiração aconteceu em 2011, no Paquistão. Para chegar a Osama Bin Laden, a CIA arquitetou uma campanha contra a pólio. Meta: extrair o DNA de crianças que seriam parentes do mentor do atentado contra as Torres Gêmeas, para tentar identificá-lo. A farsa, revelada em 2011 pelo jornal britânico The Guardian, impulsionou uma caçada a profissionais da saúde, sobretudo em áreas tribais na fronteira do país com o Afeganistão. O Talibã ajudou a espalhar que o Ocidente usava programas de vacinação para atacar muçulmanos. A boataria incluiu vacinas com carne de porco (vetada pelo islã) e que provocavam AIDS e esterilidade. Saldo: vinte e dois vacinadores assassinados entre 2012 e 2013, segundo a ONG Human Rights Watch, e um surto de pólio no país.
O Facebook no Brasil possui dois grandes movimentos baseados em teorias da conspiração contra as vacinas, com aproximadamente 10.000 seguidores cada um: “O Lado Obscuro das Vacinas” e “VACINAS: O Maior CRIME da História!”.

Busca Ativa para cobertura vacinal
A proposta atualmente em discussão é que seja feita uma busca ativa da população para estimular a vacinação. Mas isso teria que ser financiada pelo setor privado ou utilizar verbas municipais. Seriam contratados agentes de saúde e transporte adequado para atingir a população nos seus lares. Já existem experiências piloto sobre essa iniciativa, mas as regiões beneficiadas ainda são limitadas.
Helio Osmo
MD, MBA e sócio-fundador da Science & Strategy, parceira da NuOn Health