O Programa Nacional de DST-AIDS do Brasil (1988) foi considerado modelo mundial de acesso, mas isso não seria possível se antes não tivesse ocorrido uma forte mobilização social. Em 2019, ele foi extinto, sob protesto de ONGs e ativistas politicamente enfraquecidos.
Era 1995, eu trabalhava numa multinacional que tinha acabado de disponibilizar o medicamento Zalcitabina, que estava recomendado para ser utilizado juntamente com o AZT em pacientes que viviam com AIDS. Recebo uma ligação do Pedro Bial. Ele queria fazer uma matéria reclamando da falta do produto nas farmácias e isso seria publicado no Fantástico daquela semana. Eu era jovem na época, peguei o número dele e fui falar com a secretária do Presidente. Era uma experiência nova para todos.
Anos depois, me lembrei do episódio e entendi a força da mobilização social. Os jornalistas eram liderados pela jornalista e ativista Roseli Tardelli, que anos depois criou a Agência AIDS de notícias. O irmão da jornalista havia contraído AIDS e a família processou o plano de saúde para o pagamento do tratamento.
Entendi então que a velocidade de incorporação de um medicamento no governo é diretamente proporcional à força da mobilização social. O binômio imprensa e organização social gera vontade política. Essa é uma lição que ainda serve nos dias atuais.
O Programa Nacional de DST-AIDS (PN-DST-AIDS) foi criado em 1988, mesmo ano do nascimento do SUS. O Ministério da Saúde (MS) criava então um sistema de saúde federal paralelo ao SUS, para uma assistência integral aos pacientes que viviam com AIDS. Os pacientes seriam atendidos em Centros de Referência (CRT-AIDS) e receberiam atendimento de saúde multiprofissional, medicamentos, testagem, e medidas preventivas.
A população em geral teria testagem anônima para estimular o diagnóstico precoce. Preservativos ficariam à disposição e seriam dados gratuitamente. O PN-DST-AIDS foi criado por orientação da CNAIDS, uma comissão criada pelo MS em 1986, destinada a assessorar o Ministério da Saúde na definição de mecanismos técnico-operacionais para o controle da AIDS, coordenar a produção de documentos técnicos e científicos e auxiliar o Ministério da Saúde na avaliação de desempenho dos diversos componentes da ação de controle da AIDS.
A CNAIDS era composta por Organizações Sociais Civis (OSC) e uma câmara técnica formada por profissionais da saúde, que avaliavam a necessidade da compra de medicamentos. Essa câmara técnica definia protocolos de tratamento. Inicialmente, a câmara tinha muita influência nas decisões do Programa. Entretanto, a partir de 2004-2005, como não cediam às pressões políticas, foram perdendo força gradativamente. Vários membros da câmara técnica começaram a se desligar por discordar de decisões que não primavam os interesses dos pacientes.
O PN-DST-AIDS tinha um orçamento independente, enquanto as outras doenças entrariam numa cesta conjunta que poderia ter cortes durante o período de gestão anual. As empresas negociavam a venda dos medicamentos diretamente com o PN-DST-AIDS. Com isso, evitava-se a presença de intermediários, com o benefício da redução de custos.
No início, o PN-DST-AIDS tinha uma relação conturbada com as ONGs e só depois do ano 2000 começaram a viver em parceria. Essa parceria foi questionada do ponto de vista ético, uma vez que recebiam fundos do governo e que gerava uma dependência financeira e um meio de vida para grupos específicos. Não poderiam “criticar” nem “pressionar” o seu pagador. A partir daí, o MS passou a ter mais força na negociação com a indústria farmacêutica e começaram a ocorrer demoras na incorporação de medicamentos mais modernos.
Os testes genéticos virais, que eram feitos quando o paciente desenvolvia resistência ao tratamento e precisava mudar para medicamentos mais modernos, levavam até um ano para ficarem prontos. Com isso, o governo economizava seu orçamento e o paciente não usufruía de um tratamento ideal.
Chegaram os antirretrovirais (AR), que mudaram a doença e transformaram a AIDS numa doença crônica, mas não curável. As farmacêuticas multinacionais de grande porte começaram a lançar seus produtos e se adaptaram ao sistema do governo para venda direta e entrega dos medicamentos em Brasília. Os produtos vinham das matrizes europeias ou americanas, e o avião descia diretamente no aeroporto de Brasília. Funcionários do PN-DST-AIDS recebiam os medicamentos no aeroporto. Os medicamentos vinham com uma embalagem com dizeres específicos já em português.
No início da década de 2000, o número de pacientes ainda aumentava e superava a casa de meio milhão. Havia uma pressão orçamentária muito grande em relação ao custo dos medicamentos e uma preocupação quanto ao custo dos mandados judiciais. Foi quando aconteceu a famosa “quebra da patente”, em 2007, do Efavirenz, que na verdade nunca foi uma quebra de patente, e sim uma “Licença Compulsória” acordada com o fabricante. Tanto que a formulação infantil do Efavirenz continuou sendo vendida pelo fabricante detentor da propriedade intelectual.
Com isso, o governo começou a comprar a droga na Índia e teve um alívio, dizia o governo, de 30 milhões de dólares no orçamento. Cumpre ressaltar que a multinacional ainda seria remunerada em 1,5% da produção efetiva ou da importação do medicamento genérico e o governo brasileiro deveria tratar de forma sigilosa as informações cedidas pela empresa. O fato é que a empresa vendia ao Governo brasileiro o comprimido do “Efavirenz” por um valor de US$ 1,59 a unidade, 136% a mais do que ela cobrava na Tailândia (US$ 0,75). O genérico indiano custava US$ 0,45 a unidade.
Em 2008, foi criada CITEC, que anos depois mudou a denominação para CONITEC. Mais um entrave foi criado para atrasar as incorporações no sistema público de saúde. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), criada pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, que dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), é um órgão colegiado de caráter permanente, integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde, tem por objetivo assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de tecnologias em saúde, bem como na constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas (PCDT). A CONITEC é vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), do Ministério da Saúde, o qual é responsável pela incorporação de tecnologias no SUS e assistida pelo Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGITS).
A partir daí, as decisões sobre a incorporação de novos medicamentos deixou de ser uma atribuição do PN-AIDS e passou a ser da CONITEC. A câmara técnica do PN-AIDS também perdeu poder de influenciar a compra, sendo apenas “consultado” pela câmara técnica da CONITEC que, diga-se de passagem, nunca teve a participação de médicos ou associações de pacientes.
Em 2009, os Programas de AIDS e Hepatites foram fundidos em um único departamento. Um sinal de que a AIDS passou a ter menos relevância para o governo.
O Decreto Nº 9.795 do MS, de 17 de maio de 2019, que modificou a estrutura do Ministério da Saúde, transformou o Departamento de IST, AIDS e Hepatites Virais em “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”. Muitos consideraram esse decreto a morte do Programa Nacional de AIDS. O governo, na prática, extinguiu um dos programas de AIDS mais importantes do mundo, que foi, durante décadas, referência internacional na luta contra a AIDS. Mais do que um programa, esse Decreto acabou com uma experiência democrática de governança de uma epidemia baseada na participação social e na intersetorialidade.
A força da mobilização da sociedade que defende a saúde e direitos dos pacientes já foi testada e comprovada como fundamental para mudanças em favor dos pacientes. Num mundo cada vez mais inclusivo, pacientes vulneráveis precisam ter voz sempre. A inclusão promovida pelo SUS não se sustenta por si só. Leis não são suficientes.
Helio Osmo
MD, MBA e sócio-fundador da Science & Strategy, parceira da NuOn Health