Por Vanessa Tubel, CEO da JCR Farmacêutica, empresa de origem japonesa focada no desenvolvimento de tratamentos para doenças raras e presente no Brasil desde março de 2020.
Quando o diagnóstico de uma doença rara é confirmado, geralmente depois de uma peregrinação por médicos e hospitais que leva em média cinco anos, inicia-se uma nova corrida, desta vez pelo acesso ao tratamento, tão complexa quanto a descoberta da doença.
O Brasil tem cerca de 13 milhões de pessoas vivendo com enfermidades raras, sendo que a maioria são crianças. Uma doença tem a classificação de rara quando ocorre em 65 a cada 100 mil pessoas. Em 95% dos casos não há cura, apenas cuidados como terapias de reabilitação, melhoria da qualidade de vida e tratamento de outros sintomas que ocorrem em decorrência da própria doença.
Em geral, as doenças raras são condições crônicas, progressivas e incapacitantes, podendo ser degenerativas, reduzindo a expectativa de vida elevando à morte prematura. Algumas doenças raras ainda não têm tratamento; contam com opções de cirurgia ou terapias paliativas apenas para amenizar os sintomas. No entanto, para outros casos já existem tratamentos, que podem reduzir as complicações, impedir o agravamento e até a evolução/progressão da doença, evitando óbitos prematuros.
Para obter o diagnóstico precoce –já que entre 50%e 75% das doenças raras começam na infância1 –em 2001 o Brasil criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal– PNTN2, que incluiu inicialmente quatro doenças, com implementação gradual em três fases. Em 2012, o Ministério da Saúde incluiu no PNTN mais duas doenças, e em 2021, com a publicação da Lei nº 14.154/2021, se ampliou o PNTN de seis para cerca de 50 doenças, dentre 14 grupos diferentes de enfermidades.
Com isso, será possível obter o diagnóstico de diversas doenças raras, cujos tratamentos já estão disponíveis, desde que o Ministério da Saúde regulamente e trabalhe em parceria com os Estados para a organização e a implementação de cada uma das cinco etapas do programa. Saber que existe um tratamento para uma doença rara diagnosticada representa um alívio, principalmente quando se trata do grupo de doenças degenerativas no qual o tratamento precoce pode não somente estabilizar a progressão da doença, mas também evitar mortes prematuras. Porém, o paciente de uma doença rara e sua família ainda precisarão enfrentar a jornada do acesso, que muitas vezes é bastante longa, até receber o tratamento indicado.
Até 2021, a Anvisa aprovou aproximadamente 90 medicamentos para o tratamento de doenças raras no Brasil3. Anova regulamentação do órgão, que entrou em vigor em 2017 visando o registro desses medicamentos de forma mais célere, possibilitou uma análise com critérios diferenciados em relação aos procedimentos de registro convencionais, sem comprometer sua segurança, eficácia e qualidade. Isto representa um enorme avanço para o país, significando melhoria da oferta de produtos à população que necessita desses medicamentos.
Um exemplo são os medicamentos desenvolvidos para doenças degenerativas. A legislação em vigor permite à indústria submeter o registro destes medicamentos com os resultados do estudo fase II e com o estudo fase III ainda em andamento. Os pacientes com estas doenças muitas vezes não têm quatro ou cinco anos para esperar o final do estudo fase III, porque já terão sido afetados pela degeneração causada por elas, que levam a óbito precocemente. Porém, como não se tem uma solução terapêutica já registrada para estes pacientes, uma alternativa seria um acordo entre a ANVISA e a indústria farmacêutica desenvolvedora da nova tecnologia, para uma aprovação condicionada à entrega de dados obtidos ao longo do estudo, que tem por objetivo ratificar todos os benefícios de eficácia, segurança e qualidade que os demais estudos já teriam demonstrado.
Isso porque para as doenças raras e ultrarraras, são desenvolvidos tratamentos para um pequeno grupo de pacientes, que, ao ter acesso à inovação, percebem o valor daquela tecnologia para a qualidade de vida e a estabilização da doença.
Esta mesma legislação da Anvisa permitiu também a criação de um procedimento especial para anuência de ensaios clínicos para doenças raras, fazendo com que o Brasil ganhasse inúmeros novos estudos clínicos, inclusive em fases I e II, que se tornam fundamentais para o acesso antecipado do paciente brasileiro à inovação, ao mesmo tempo que os pacientes europeus, americanos e outros latino-americanos.
O desenvolvimento de novos medicamentos para doenças raras está diretamente ligado à realização de pesquisa clínica, que requer tempo e investimento. O Brasil perdia muitos estudos clínicos para Europa, Estados Unidos e inclusive para países vizinhos como Argentina e Peru, pela longa jornada de aprovações éticas e regulatórias. Com a pandemia de COVID-19, o Brasil teve um crescimento importante na realização de pesquisas clínicas e voltou a se destacar no mercado mundial, mostrando competitividade no segmento.
No mundo, estima-se que haja mais de oito mil doenças raras, a maioria de origem genética. Por isso, incentivos à pesquisa e ao desenvolvimento de novos tratamentos são cada vez mais urgentes, dependendo de investimentos e atenção dos setores público e privado.
Em 2014, o Brasil teve um importante avanço na atenção aos pacientes com doenças raras com a publicação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que aprovou as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e instituiu incentivos financeiros de custeio.
No entanto, chegamos a 2022, e a efetiva implementação desta política permanece desafiadora, seja pela ausência de um fundo específico de financiamento, seja pela falta de governança dos processos, gerenciamento e tratamento dos pacientes com doenças raras, que venham trazer uma maior previsibilidade no investimento.
Neste contexto, uma importante iniciativa seria a criação de uma Secretaria Especial para doenças raras no âmbito do Ministério da Saúde, que pudesse:(i)acompanhar, incentivar e apoiar as pesquisas clínicas em doenças raras e ultrarraras desenvolvidas no Brasil; (ii) estruturar a governança de implementação da triagem neonatal em todos os Estados; (iii) credenciar e habilitar os Centros de Referência e Serviços em doenças raras;(iv) alocar um orçamento específico para a aquisição de novas tecnologias e o monitoramento do horizonte tecnológico, incluindo o financiamento adequado dos serviços multidisciplinares executados pelos profissionais e instituições que diagnosticam e tratam estes pacientes; (v) desenvolver os multicritérios de decisão (MDCA) para a avaliação de tecnologias em saúde (ATS) para estas doenças; (vi) estruturar a governança das compras governamentais para evitar a falta ou as interrupções nos tratamentos, bem como (vii) organizar a rede de assistência do SUS, desde a atenção primária até a média e alta complexidade, já que muitos pacientes ficam anos utilizando os serviços e a infraestrutura da atenção primária sem o correto encaminhamento aos especialistas, que estão na média ou alta complexidade.
Quando observada, por exemplo, a criação do Programa Nacional de Imunização, é possível notar que o Brasil ainda é referência mundial na organização, gestão e administração deste tipo de programa, que ajudou na erradicação de diversas doenças preventivamente tratadas por meio da vacinação da população alvo, criando uma forte cultura de prevenção de doenças que podem ser evitadas.
Se fosse criado um centro de inteligência em saúde no âmbito do Ministério da Saúde, este poderia ser um hub focado em munir estados e municípios com inteligência para a oferta de serviços e produtos de saúde, com o propósito de reduzir a falta de medicamentos em certas regiões. Assim, as decisões seriam baseadas em dados de mundo real, trazendo uma maior efetividade nas decisões e na definição de prioridades do poder público.
Outro grande desafio que o Brasil enfrenta é a implementação de novos modelos de acesso para que haja uma maior oportunidade de trazer a inovação aos pacientes brasileiros, com a incorporação de novas tecnologias para doenças raras no SUS. Algumas incertezas causadas pelo pequeno número de pacientes no processo de desenvolvimento clínico podem ser sanadas no momento em que se analisam mais dados dos benefícios do medicamento para os pacientes elegíveis à nova tecnologia.
A maioria dos países já utiliza um modelo muito comum para as doenças raras, o risco compartilhado. Há muitos anos, o compartilhamento de risco para diversas enfermidades vem sendo implementado em diversos países da Europa, como uma forma de proporcionar o acesso facilitado aos pacientes que possam se beneficiar do tratamento, já que muitas vezes, a exemplo das doenças degenerativas, a demora poderá causar a irreversibilidade e o óbito precoce do paciente.
Para que o Brasil possa tomar as melhores decisões para a implementação de suas políticas públicas para doenças raras, estas devem se basear em fatos e dados reais, a serem coletados do patient registry, que está em fase de desenvolvimento com a Sociedade Brasileira de Genética Médica. Além disso, a educação médica é fundamental para o conhecimento mais aprofundado sobre as diversas doenças raras e o desenvolvimento de possíveis soluções para proporcionar um sistema equânime e sustentável.
Neste sentido, é fundamental a participação de todos os stakeholders envolvidos no ecossistema das doenças raras, com o objetivo de fomentar as discussões e a agenda de proposições positivas para o tema, com benefícios diretos para o paciente.
Referências
1 –Sociedade Brasileira de Genética Médica – post disponível em http://www.intagram.com/p/Cjk3TAxJEaN/?igshid=YmMyMTA2M2Y= (acesso em 25/10/2022).
2 –Ministério da Saúde – Portaria 822 de 06 de junho de 2001 – disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2001/prt0822_06_06_2001.html (acesso em 25/10/2022).
3 – Anvisa – Medicamentos destinados a doenças raras – disponível em https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/medicamentos/doencas-raras/medicamentos-registrados-para-doencas-raras (acesso em 25/10/2022).