Dr. Eduardo F. Motti
Sócio Gestor da Consultoria Trials & Training
Nos anos 1930, quando começaram a aparecer a maioria dos medicamentos que usamos hoje, havia uma proximidade entre o cientista que trabalhava no laboratório, o médico e o paciente que, hoje, desapareceu. Novos compostos sintetizados eram imediatamente levados à clínica, onde pacientes criticamente doentes esperavam por uma salvação. Sobre isso, vale a pena ler o relato de Daniel Bovet sobre os primeiros usos da sulfa feitos em Paris¹. Dar um novo remédio e aguardar na beira do leito seu efeito é uma experiência que quase não existe mais no nosso mundo de regulamentos e tecnologias.
Desde essa época, a pesquisa clínica se desenvolveu baseada no empenho de profissionais imbuídos de um propósito – trazer algum benefício à saúde de quem mais precisa. E usar o conhecimento novo para beneficiar a sociedade. O componente humanista está na base da pesquisa clínica; nós oferecemos aos voluntários nosso trabalho e dedicação sinceros, esperança, e pedimos a eles um voto de confiança.
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A teoria fria nos ensina que pesquisa não é tratamento, é um ensaio, uma tentativa. Para o paciente, entretanto, o simples contato com a equipe da pesquisa já é terapêutico e não pode ser menosprezado. O relacionamento que se estabelece entre a equipe do estudo e o paciente é determinante para o recrutamento bem-sucedido, a aderência ao plano de visitas e a retenção até o final da observação.
Nos últimos 20 anos, a incorporação de novas tecnologias à pesquisa clínica tem trazido elementos novos que, por um lado, aumentaram muito a eficiência dos processos e a acurácia verificada dos dados, por outro podem prejudicar a qualidade do relacionamento humano, afastando os pacientes de seus cuidadores. São exemplos disso a captura eletrônica de dados médicos, as tecnologias de respostas interativas, a adoção de “patient-reported outcomes”, de sensores “wearables”, etc.
Todos esses fatores podem ser minimizados se cada contato direto entre o paciente e a equipe for intenso e de qualidade e é isso que precisamos sempre buscar. Mas hoje há uma novidade – os estudos descentralizados. Estamos sendo levados a acreditar que os pacientes preferem não vir ao centro de pesquisa. Podem receber os medicamentos em casa, receber instruções e reportar eventos por telefone, sem encontrar pessoalmente seu médico e a equipe. Além disso, em muitos projetos, o paciente não tem escolha, se quiser participar, será tudo à distância.
Será que a realidade dos Estados Unidos, com sua população individualista e espalhada em seu vasto território, é superponível ao Brasil, com nossas deficiências na saúde pública, população latina, gregária e calorosa? Como é a resposta do nosso paciente? Não sabemos ao certo. Estamos diante de nova forma de colonialismo?
A pesquisa clínica corre dois outros riscos. O primeiro é que carece de informação independente. Enquanto os estudos clínicos são reportados em publicações “peer-reviewed” de alta tradição científica, praticamente toda a literatura sobre o processo de pesquisa clínica é publicada por autores com interesses comerciais declarados e em veículos sem revisão por pares. É o que se pode chamar de “infomercials”. Isso nos leva ao segundo problema: a pressão econômica pelo uso de soluções tecnológicas é infinitamente maior do que a pressão pelo aprimoramento das relações humanas na pesquisa. Aliás, muitas vezes o objetivo declarado é economizar no custo da mão de obra através de soluções tecnológicas.
Mas nada está perdido, pois os pacientes continuam se beneficiando das pesquisas e quando conseguimos juntar os benefícios das novas tecnologias ao caráter humanitário dos profissionais, o resultado continua sendo excepcional, como pudemos ver durante a pandemia. A tecnologia precisa e pode ser facilitadora do relacionamento humano, aí vamos dar um salto de qualidade na pesquisa.
¹Bovet, Daniel. Vitórias da Química: a Conquista do Direito à Saúde. Editora da Universidade de Brasília, 1993.