Fonte: BBC
Nas últimas décadas, muitas das pesquisas científicas que tentaram desvendar o funcionamento do corpo humano concentraram-se em estudar três sistemas principais: o genoma, o proteoma e o microbioma.
O genoma é a sequência de DNA que todo organismo possui e contém sua informação genética completa. Já o proteoma é o conjunto de proteínas fabricadas pelos genes – os “tijolos essenciais” da vida. E o microbioma é o ecossistema de micro-organismos que vivem no corpo e são fundamentais para a saúde.
“Assim como os sinais elétricos sustentam as redes de comunicação do mundo, estamos descobrindo que eles fazem o mesmo no nosso corpo: a bioeletricidade é a forma em que as nossas células se comunicam entre si”, explica em um artigo recente no site da organização britânica Nesta a divulgadora científica Sally Adee, especialista neste campo e autora do livro We Are Electric (“Somos elétricos”, em tradução livre), lançado em fevereiro de 2023.
Algumas pessoas atribuem a Adee a criação do neologismo “electroma”. Ela afirma que “não podemos subestimar a forma total e absoluta em que todos os seus movimentos, percepções e pensamentos – e os meus – são controlados pela eletricidade”.
Ela destaca que compreender o electroma é fundamental porque, se interviermos no processo bioelétrico do corpo, poderemos “consertá-lo quando houver algo de errado, seja por trauma, defeitos de nascimento ou câncer”.
O professor emérito de biologia do câncer Mustafa Djamgoz, do Imperial College de Londres, é um dos primeiros cientistas a aplicar a bioeletricidade no tratamento desta doença.
Djamgoz também leciona neurobiologia na mesma universidade e estuda os processos bioelétricos do corpo há décadas. Desde 2019, ele é coeditor-chefe de Bioelectricity, a única revista científica dedicada a este campo.
Mas, antes de entender como usar a bioeletricidade para tratar do câncer, a BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – pediu a Djamgoz que explicasse o que é essa corrente e como ela é gerada dentro do nosso corpo.
“Os fluidos do nosso corpo estão repletos destes íons. Os de carga oposta se atraem e os que possuem a mesma carga se repelem”, prossegue ele. “E, quando circulam pelo nosso corpo, eles geram uma corrente.”
Djamgoz ressalta que é uma corrente com potência muito baixa: apenas 70 milivolts. Como termo de comparação, uma pilha AA comum tem 1,5 mil milivolts. Mas a bioeletricidade do corpo é fundamental para seu funcionamento, segundo ele, já que é através desses sinais elétricos que as diferentes partes do corpo se comunicam.
Djamgoz destaca que a rede bioelétrica do corpo funciona sob os mesmos princípios fundamentais aplicados a qualquer circuito elétrico, incluindo a lei de Ohm, que estabelece que a tensão é igual à corrente, multiplicada pela resistência.
Como a membrana tem função de vedação, os íons, para penetrar na célula, devem atravessar uma espécie de comporta – proteínas chamadas de “canais iônicos”, incrustadas na membrana. Quando os íons fluem por esses canais, produz-se a condução elétrica.
Para o especialista, é um paradoxo que o sistema bioelétrico tenha sido muito menos estudado que outros sistemas que regem o corpo, como o genoma, já que sua compreensão apresenta muito menos dificuldade.
“Temos 22 mil genes e cada pessoa tem uma composição genética diferente. Por isso é que temos medicina personalizada”, segundo ele. “Mas, na bioeletricidade, existe uma única lei fundamental, aplicada a todos.”
Djamgoz também destaca que todas as células e tecidos do nosso corpo – neurônios, nervos, músculos, cartilagens, intestino etc. – utilizam o mesmo processo para se comunicar.
“Quando pensamos nas propriedades elétricas do corpo, pensamos em primeiro lugar no cérebro, no coração e nos músculos, mas a realidade é que até os micróbios do nosso intestino, o sistema imunológico e as células cancerígenas geram sinais elétricos”, afirma ele.
Voltando à aplicação da bioeletricidade para impedir o avanço do câncer, o tratamento revolucionário sendo desenvolvido por Djamgoz está relacionado com a forma de transmissão dos sinais elétricos dentro do corpo.
Já mencionamos que, para entrar e sair das células, os íons (átomos com carga elétrica) utilizam canais iônicos, que são proteínas presentes nas membranas celulares. Elas funcionam como comportas – quando elas se abrem, o íon pode passar.
No caso do câncer, que é basicamente uma doença que ocorre quando as células crescem e se propagam de forma descontrolada, o professor explica que esses canais iônicos desempenham papel fundamental, já que “são eles que controlam a proliferação e a migração das células”.
Graças às pesquisas iniciadas pelo especialista na década de 1990, ele e sua equipe descobriram um dado revelador: as células cancerígenas ficam agressivas – ou seja, elas tendem a se multiplicar e propagar – quando são “eletricamente excitáveis”.
Este dado é muito importante, segundo o professor, porque “o problema do câncer não é ter um tumor. Você pode viver com um tumor, desde que seja local. O problema aumenta quando o câncer se propaga, em um processo que chamamos de metástase.”
Djamgoz descobriu que a chave para interromper esse crescimento hiperativo é fechar as comportas elétricas das células – ou seja, bloquear os canais iônicos, mais especificamente os canais de íons de sódio, que são os responsáveis por causar a “excitação eletrônica” que promove o crescimento do câncer.
Utilizando produtos farmacêuticos para bloquear esses canais, o professor conseguiu interromper a proliferação e a propagação de células cancerígenas em animais. Seu próximo desafio é realizar testes em seres humanos, o que é um processo muito mais complexo.
Mas ele defende que já tem indícios de que a técnica também poderá funcionar em pessoas.
O especialista em ciências biomédicas William Brackenbury, da Universidade de York, no Reino Unido, é ex-estudante de doutorado de Djamgoz. No final de 2022, ele publicou os resultados de um estudo epidemiológico que analisou informações de 53 mil pacientes com câncer de três tipos: mama, próstata e cólon.
Cerca de 150 desses pacientes também tinham angina crônica, uma doença coronariana que é tratada utilizando um medicamento chamado ranolazina, que bloqueia os canais de íons de sódio em condições de baixo nível de oxigênio, que também são produzidas nos tumores em crescimento.