Fonte: Folha de S.Paulo
A empresa Filament Health, do Canadá, mexe com vespeiros ao anunciar um extrato de vegetais com que se prepara a ayahuasca. Pelo Protocolo de Nagoya, tratado internacional sobre biodiversidade, teria de obter consentimento informado e repartir benefícios com povos indígenas, mas não divulga como isso seria feito.
Ayahuasca é uma bebida com efeito psicodélico usada em cerimônias por dezenas de povos indígenas da Amazônia e religiões estabelecidas como Santo Daime e União do Vegetal (UDV). No preparo do chá entram as plantas chacrona (Psychotria viridis) e cipó-mariri (Banisteriopsis caapi).
A chacrona fornece a dimetiltriptamina (DMT), substância psicoativa apontada como causadora das mirações (visões) e da alteração da consciência. O cipó provê inibidores de enzimas que, sem eles, impediriam a chegada da DMT ao cérebro. A beberagem pode causar também vômito e diarreia, tidos nesses rituais como formas de limpeza física e espiritual.
A notícia da Filament saiu em 4 de dezembro no jornal Toronto Star. A startup aposta no mercado de produtos naturais para futuros tratamentos psicodélicos, na crença de que parte do público preferiria usar fitoterápicos em lugar de fármacos para desencadear “viagens” que a pesquisa clínica vem demonstrando terem feito contra depressão e estresse pós-traumático, por exemplo.
Os extratos da Filament não contêm só a DMT da chacrona e as betacarbolinas (inibidores da enzima MAO) do cipó, mas todos os alcaloides e outras substâncias desses vegetais, segundo a empresa. E isso em doses estáveis, diferentemente do chá, em que as concentrações variam conforme o preparo local.
Outros grupos já produziram a chamada “farmahuasca”, cápsulas contendo mistura sintética de DMT e betacarbolinas como a harmina. A proposta da firma canadense é outra: lançar mão de um “efeito comitiva” (entourage effect), partindo do princípio de que a complexidade química do chá com sua miríade de compostos já comprovou ser segura e benéfica no uso cerimonial ao longo de séculos.
Um ensaio clínico pioneiro com 29 voluntários na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) mostrou efeitos benéficos imediatos e sustentados da ayahuasca em pacientes com depressão resistente a tratamento. Empregou-se, no caso, bebida fornecida pela igreja Barquinha de Ji-Paraná (RO).
A padronização daria mais segurança para testes clínicos e futuras terapias, se e quando aprovadas por autoridades reguladoras. A empresa também anunciou extratos estáveis de cogumelos do gênero Psilocybe, que contêm o composto psicodélico psilocibina e passarão em breve a ser usados legalmente nos estados norte-americanos Oregon e Colorado.
Para obter aprovação da FDA, agência de fármacos dos EUA, a Filament firmou parceria com o programa Pesquisa Translacional Psicodélica (TrPR) da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF). Os testes clínicos com fungos estão mais avançados (fase 2) que os de extratos de ayahuasca (fase 1).
A antropóloga brasileira Beatriz Labate, do Instituto Chacruna em São Francisco, considera que o projeto da Filament levanta várias questões éticas. “Houve alguma consulta prévia e informada a organizações indígenas? Há um projeto de reciprocidade ou repartição de benefícios?”
Labate aponta a realização recente no Brasil da 4ª Conferência Indígena da Ayahuasca, que reuniu mais de 35 grupos e explicitamente denunciou o patenteamento da ayahuasca e usos comerciais associados. Para a antropóloga, ainda há várias perguntas por responder:
“Quanto dinheiro está sendo dedicado a temas sensíveis e atuais como conservação das espécies naturais, apropriação cultural, justiça, equidade, extrativismo, biopirataria? De onde vêm as plantas usadas na pesquisa? Como reconciliar comercialização, medicalização e o caráter sagrado destas plantas?”
Benjamin Lightburn, fundador da Filament e seu principal executivo, disse ao blog que a empresa consultou várias comunidades ayahuasqueiras no Peru, mas não informou quais. “Nossa pesquisa precisa avançar antes que essas relações possam ser formalizadas e tornadas públicas”, afirmou.
“Reconhecemos que há muitas perspectivas quanto ao estudo da ayahuasca. Os grupos com que nos comunicamos acreditam no poder curativo das plantas e que a humanidade está em posição de se beneficiar com ele.”
Lightburn afirmou que a empresa trabalha com contatos no Peru e no Brasil para orientar-se sobre a importação de matéria-prima de acordo com o Protocolo de Nagoya. E, de novo, escudou-se no caráter preliminar do desenvolvimento do produto:
“Dado o estado inicial de nossa pesquisa, temos o consentimento e a documentação necessários de grupos apropriados. No futuro, temos a plena intenção de que quaisquer acordos comerciais sejam obedientes ao Protocolo de Nagoya.”
A ayahuasca, em si, não poderia ser por princípio patenteada, pois não haveria inovação digna de ser protegida por propriedade intelectual numa invenção cuja origem se perde no tempo. A Filament pode, no entanto, buscar proteção para seus métodos de extração e estabilização dos alcaloides nos vegetais que os indígenas da Amazônia foram pioneiros em combinar.
Outras empresas, respeitosas do conhecimento tradicional ou com receio de questionamentos éticos e jurídicos, buscam evitar o conflito entre propriedade intelectual e saber ancestral. É o caso da Journey Colab, que assumiu um “compromisso de patente” para a mescalina sintética que desenvolve para tratar dependência de álcool.
A Journey Colab promete não usar patentes para acionar usuários tradicionais e comunitários dos cactos peiote e San Pedro, fontes naturais de mescalina. Também criou um fundo de reciprocidade que destinará 10% dos recursos da empresa para apoiar povos originários e iniciativas para dar acesso a tais “plantas de poder”.
A Filament, segundo Lightburn, estaria ainda estudando assumir compromissos similares ao da Journey. E, a seu modo, estaria também providenciando alguma forma de compensação:
“Digno de nota, talvez, é que 10% do capital inicial da Filament foram dedicados para a Fundação Filament, que é uma entidade separada dirigida por diretores independentes cujo objetivo é apoiar atores sem finalidade de lucro no espaço dos psicodélicos naturais.”
Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.