Esse mês seguiu para sanção presidencial a Lei da Saúde Digital, que é um enorme avanço ao acesso à saúde. Como tudo que é digital, no início parece uma terra sem lei, mas vale a responsabilidade de cada um com a sua própria saúde e a responsabilidade dos profissionais de saúde com a ética e as evidências científicas.
Em meados da década de 80, foi disponibilizado um medicamento que dissolvia a obstrução de uma artéria coronária e podia interromper um infarto do miocárdio. Entretanto, esse medicamento só era efetivo se dado ao paciente até 6 horas após o início dos sintomas. Mas poucos lugares nos grandes centros tinham unidades de emergência e a distância, como sempre no Brasil, é um grande desafio. O hospital no qual eu fazia residência se especializou nesse atendimento e ofereceu levar à casa do paciente a droga e o médico. Mas era necessário um telefone, uma central de atendimento e uma ambulância. Isso era a telemedicina antes da era da internet.
A Lei da Saúde digital ou Telessaúde foi de autoria da Deputada Federal Adriana Ventura (NOVO-SP), cujo texto original estava no PL 1998-2020, que se restringia aos médicos (telemedicina). Após alterações, o texto foi ampliado para todas as áreas da saúde que se beneficiam da saúde digital. O texto considera telessaúde a modalidade de prestação de serviços de saúde à distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação.
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As tecnologias citadas no projeto envolvem, entre outros aspectos, a transmissão segura de dados e informações de saúde por meio de textos, sons, imagens e outras formas consideradas adequadas. Os atos do profissional de saúde praticados dessa forma terão validade em todo o território nacional e aquele que exercer a profissão em outra jurisdição exclusivamente por meio dessa modalidade não precisará de outra inscrição secundária ou complementar àquela do conselho de seu estado.
Entretanto, será obrigatório o registro, nos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) dos estados em que estão sediadas, das empresas intermediadoras de serviços médicos. Essas empresas são consideradas como aquelas que contratam, de forma direta ou indireta, profissionais de saúde para o exercício da telessaúde.
O texto garante ao profissional “liberdade e completa independência” de decidir sobre a utilização ou não da telessaúde, inclusive com relação à primeira consulta, ao atendimento ou ao procedimento, podendo optar pela utilização de atendimento presencial sempre que entender necessário.
Em todo caso, a prática da telessaúde será sob responsabilidade do profissional de saúde, que deverá seguir os ditames das leis do marco civil da internet, da Lei do Ato Médico, da Lei Geral de Proteção de Dados e do Código de Defesa do Consumidor.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) já havia regulamentado a telemedicina através da resolução 2314, de 20 de abril de 2022. O CFM Considera que a medicina, ao ser exercida com a utilização dos meios tecnológicos e digitais seguros, deve visar o benefício e os melhores resultados ao paciente, assim, o médico deve avaliar se a telemedicina é o método mais adequado às necessidades do paciente, naquela situação e, se necessário, o médico deve buscar capacitação no uso das Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs).
O Ministério da Saúde (MS) já possui um departamento de telessaúde desde 2007, quando criou através de portaria o Programa Telessaúde BrasilRedes (TBR) para a melhoria da atenção básica do SUS com o uso de tecnologias digitais. Esse programa visa principalmente reduzir as filas de atendimento aos usuários do SUS, mas também melhorar a comunicação e educação dos profissionais de saúde. A TBR tem uma proposta muito bem-intencionada, afinal, as filas do SUS sempre foram o principal ponto de reclamação dos usuários. Entretanto, não há uma avaliação de satisfação da população quanto ao resultado. Todas as iniciativas que buscam melhorias precisam ser criadas junto com metas e avaliação de resultados e, nisso, o SUS ainda está engatinhando.
A pandemia do SARs-Cov2 em 2020 foi a grande impulsionadora da telessaúde no Brasil.
Nos picos da contaminação, a estrutura pública e privada não suportou a demanda nos pronto-atendimentos. Os serviços privados e organizações voluntárias ofereciam um primeiro atendimento para averiguar se era recomendada uma consulta presencial, baseada nos sintomas dos pacientes. No início, não havia disponibilidade para o autoteste nas farmácias. Essas consultas virtuais, ou triagem, evitavam deslocamentos arriscados.
Os pacientes começaram a comprar na farmácia o aparelho de oximetria para monitorar a saturação de oxigênio. Isso permitiu aos médicos decidir em tempo real a necessidade ou não dos pacientes se dirigirem aos hospitais.
Laboratórios clínicos desenvolveram as coletas residenciais e entregaram resultados nos aplicativos. Os aplicativos de laboratórios clínicos estão no celular de todos os seus usuários e podem enviar os resultados aos médicos solicitantes. Os riscos de trombose foram monitorados e os médicos puderam calcular a melhor posologia dos anticoagulantes.
Também durante a pandemia os pacientes foram desencorajados a se dirigirem aos atendimentos ambulatoriais de rotina. Naturalmente com medo de se contaminare, até mesmo com instrução das autoridades, esses pacientes deixaram de comparecer a consultas e exames, o que passou a despertar preocupação dos especialistas, visto que atrasos no diagnóstico e falta de atendimento e acompanhamento poderiam agravar condições clínicas, gerando um problema no futuro. De certa forma, isso aconteceu uma vez que ocorreram atrasos nos diagnósticos precoces de câncer, ditos preventivos, principalmente mama e próstata.
A prescrição médica com certificação digital foi adotada em larga escala. Startups nasceram com esse propósito e mudaram a cultura da prescrição médica. Hoje, poucos médicos ainda não adotaram esse sistema. Além disso, farmácias e empresas de delivery passaram a entregar medicamentos em casa. Pagamento de honorários e emissão de recibos digitais também foram organizados e adaptados ao novo modelo. Atualmente, alguns planos de saúde reembolsam consultas médicas.
A telessaúde permitiu uma expansão e facilitação do acesso para outros profissionais, como psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e nutricionistas. Antes, os pacientes tinham que gastar mais tempo com deslocamentos, mas agora a adesão digital evita horários perdidos no trânsito.
Eventos médicos que exigiam longas e custosas viagens agora podem ser feitos online, beneficiando localidades distantes no Brasil e ampliando o acesso à atualização médica. Houve grande redução de custos nas estruturas presenciais dos congressos médicos e dos valores das inscrições. Palestrantes científicos tiveram um desafogo nas agendas, permitindo mais tempo para assistir seus pacientes.
As pesquisas de novos medicamentos não entraram no escopo dessa nova lei, mas terão uma regulamentação específica, norteada por aspectos éticos, segurança do paciente e proteção de dados. Durante a pandemia, se num primeiro momento houve perdas por adesão dos voluntários que não podiam comparecer nas visitas programadas, rapidamente se adaptaram ao ambiente digital com especial benefício às assinaturas eletrônicas dos documentos.
Contudo, o mais importante foi a mudança cultural pela aceitação da evolução digital do atendimento ao paciente sem a perda da qualidade, aspectos legais e éticos e manutenção das mesmas responsabilidades de todos os atores. A evolução da comunicação digital no meio social e no marketing sofreu muita resistência na saúde por receio da perda da rastreabilidade, invasões de dados confidenciais e pelo mau uso, colocando em risco à saúde do paciente.
Logo se percebeu na pandemia que o benefício era muito superior ao risco e até os mais céticos se renderam. Hoje não há como não usar a telessaúde todos os dias de alguma maneira. Seja na busca de informações ou outras que visam a manutenção ou tratamentos na saúde.
Helio Osmo
MD, MBA e sócio-fundador da Science &Strategy, parceira da NuOn Health