Dr. Eduardo F. Motti, Sócio Gestor da Consultoria Trials & Training
Um velho ditado diz que leis e salsichas, melhor não saber como foram feitas. A lei que trata da realização de pesquisas clínicas no Brasil (14874/2024) é uma história que vale a pena conhecer. Ela é importante para a vida de toda a nação.
Cercada de polêmicas, a Lei tramitou por 10 anos até ser aprovada em maio e entrar em vigor em agosto passado. Polêmicas ligadas à pesquisa médica não são novidade. Para ficar com um único exemplo local, o médico Carlos Chagas, nas duas primeiras décadas do século XX, descreveu a doença que leva seu nome, o agente causador, o agente transmissor, a forma de transmissão, e um teste para diagnóstico. Recebeu enorme respeito internacional e foi indicado ao menos duas vezes para o Prêmio Nobel de Medicina, mas não ganhou. A oposição política sofrida dentro da Academia Nacional de Medicina bombardeou o merecido reconhecimento (que até hoje o Brasil não tem).
Um século mais tarde ainda há um grande debate no país sobre a utilidade da pesquisa para o Brasil, especialmente quando associada a cooperação internacional. É correto fazer estudos com pacientes brasileiros que poderão beneficiá-los, mas também aos povos de países desenvolvidos? É correto que pesquisas feitas aqui revertam em lucro para empresas? Por outra perspectiva, é correto impedir o sistema de saúde brasileiro participar de pesquisas importantes, que podem ajudar a desenvolver instituições e profissionais locais? É correto negar à população brasileira a possibilidade de acesso precoce a novos tratamentos que podem salvar vidas?
A pesquisa clínica é realizada em todos os países civilizados que aceitam seguir regras internacionais. Além de seu caráter acadêmico, passou a ganhar muita importância o papel desempenhado no desenvolvimento de novos produtos para a saúde, como medicamentos, vacinas, equipamentos, testes diagnósticos e outros. Esse é um campo que movimenta bilhões de dólares anualmente e precisa ser regulado para criar padrões internacionais e para prevenir abusos, sejam éticos, econômicos, ou mesmo científicos. Na verdade, o Brasil precisa mais da pesquisa clínica, do que ela do Brasil (veja aqui).
Desde a primeira regulação brasileira, emitida em 1996 (Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde), criou-se um sistema que mais cerceou do que incentivou a pesquisa. O participante brasileiro foi protegido, sim. Ao mesmo tempo, as barreiras burocráticas levaram o Brasil a nunca conseguir sair de uma posição periférica no cenário científico mundial.
Há 10 anos, um grupo de pesquisadores e pacientes com doenças graves conseguiu a atenção de parlamentares para o assunto. A ex-senadora Ana Amélia Lemos (RS) entendeu o pleito e propôs um Projeto de Lei ao Senado, que aproximava o Brasil das regras internacionais. Esse Projeto tramitou durante todos esses anos, foi modificado e aperfeiçoado, até ser sancionado em maio de 2024. Esse longo processo foi marcado por embates ideológicos intensos. De um lado, profissionais de saúde, empresas e pacientes lutando por mais pesquisas, mais acesso e mais atratividade do Brasil nessa área. De outro, profissionais, mormente em órgãos públicos, e com pouca vivência no dia a dia da pesquisa, engajados em promover que a nova Lei reduziria a proteção aos pacientes brasileiros. Ao final de muito debate, a nova Lei recebeu aprovação de todos os partidos políticos no Congresso, e foi sancionada com mínimos vetos. Agora, aguarda um decreto que vai regulamentar vários dispositivos, que poderão modular significativamente a sua aplicação.
Como dizem os advogados dura lex sed lex. A Lei está aí e o melhor a fazer é aproximar as correntes de pensamento, focar nas convergências, para maximizar o alcance das mudanças das novas regras. Precisamos trabalhar em conjunto, desarmar espíritos e pensar no benefício aos pacientes e a todos os profissionais envolvidos. Há muito a fazer pelo sistema de saúde no Brasil e a pesquisa clínica pode ser uma grande aliada.